sábado, 20 de abril de 2013

Guarany Futebol Clube, 106 anos

Uma crônica de Sapiran Brito

MENINOS EU VI

Eu vi os meninos na praça, ali na Praça da Matriz. A majestosa igreja silenciosa e solene compunha o belo cenário do cair de tarde outonal. Bancos, bancos cobertos de folhas , casais de namorados, cães, passarinhos, todo aquele ambiente de praça, espaço democrático para reunião daqueles que não têm onde se reunir. A praça é do povo como o céu é do condor.

Os meninos, repetidamente, declamavam os versos do poeta Castro Alves, bem como outros versos e frases dos autores românticos por quem eles tanto se interessavam.

Corria o ano de 1907, a grande guerra ainda não havia acontecido e o mundo todo era só romantismo. Os meninos, românticos e atilados, comiam as revistas com os olhos, tragavam os jornais e livros, de tudo se informando. Ansiavam pelo novo e punham seus olhinhos no futuro. E veio a notícia. Os ingleses tinham criado regras e organizado um jogo milenar ao qual denominaram futebol. Um brasileiro tinha trazido da Inglaterra, regras, bolas, uniformes e outros apetrechos para realização do tal jogo que era a última moda no Brasil. Chutar a bola ? Era uma boa ideia e trataram de se informar melhor.

Precisava de 11. Onze eles já eram. Conseguiram a bola. E a bola de tento, é claro, lembrava os figos da matriz, aquilo parecia um sinal. Foram procurar um local para a prática do esporte e, românticos que eram, se deixaram guiar pelo planeta da Deusa do Amor. E lá estava ela, a Vênus, a Estrela D´alva, e ali eles se fixaram. Orientados pela estrela que os guiaria a partir de então.

Eram tempos românticos aqueles e os meninos que liam, diziam versos e cantavam modinhas apaixonadas nas noites de serenata agora sonhavam com a formação de uma equipe esportiva. Adversários não haveriam de faltar, pois sendo um jogo mágico, outros, por certo, seriam atraídos. Faltava o fardamento, pois o jogo, era um jogo fino e requintado e todos deviam se apresentar muito bem e uniformizados. Modelos copiados de revistas, tecidos adquiridos em longas suaves prestações. Da confecção se encarregariam as mães, as tias e as avós. E as cores? “ENCARNADO”, gritou um, o mais maduro dos meninos e justificou: “Encarnado é sangue, é vida, é a cor de Ricardo Coração de Leão. Encarnado é luta, é combate, não tem cor melhor para uma esquadra” e rematou já sonhando com futuros embates com versos de um outro romântico: “A vida é o combate que aos fracos abate e aos fortes e aos bravos só pode exaltar”, e já respirava para engrenar no poema quando um segundo menino, este versado em desenho e pintura, atalhou: “Tem que ter outra cor senão fica chapado”. Silêncio. “BRANCO como a cor da nossa estrela”, disse timidamente o menorzinho e mais não disse e nem precisava. “Tá decido”, falou o líder antes que alguém sugerisse outra cor. “É encarnado e branco”. “Tem que ter um nome”, falou um tímido. “Ah, o nome deixa pra depois”, respondeu um de espírito prático, como quem já quisesse entrar em campo. “Não, senhor, tem que ser agora, tem que nascer tudo de uma vez , tem que estar completo e de mais a mais não é sempre que as nossas reuniões terminam bem. Vamos botar as cabeças para pensar”. E um turbilhão tomou conta da mente dos meninos. Datas, fatos históricos, acidentes geográficos, heróis mitológicos, vultos da história, músicos, poetas, romances e odisseias. Mil ideias e as cabecinhas quase explodindo por saberem que melhor era a sua ideia, pena que eram muitas e tardaram. O menor de todos os meninos, que no verdor dos seus onze anos já conhecia a obra de Alencar, lembrou-se do seu herói preferido e com a voz esganipada gritou:
“GUA-RA-NY”, como um corisco a palavra eletrizou o ambiente. Dizem que balançaram as palmeiras e soaram os dois sinos da torre, talvez tivessem soado, pois caia a tarde outonal e já se ouvia o coro dos pardais. O líder completou : “Guarany, sim. Guarany da nossa gente, Guarany dos nossos índios, Guarany da Ópera de Carlos Gomes que ouvimos na semana passada na casa do meu avô. E ímpeto romântico atacou, como para encerrar o assunto.

No meio das tabas de amenos verdores
Cercadas de troncos – coberto do flores
Alteiam-se os tetos d´altiva nação
São muitos seus filhos, nos ânimos fortes
Temíveis na guerra que em densas cortes
Assombram das matas a imensa extensão.

São rudos, severos, sedentos de glória,
Já prélios incitam, já cantam vitória,
Já meigos atendem à voz do cantor:

“O que é isso ? Um comício?”, brada o vigário interrompendo a reunião. “Não ouviram os sinos chamando para a missa?" A missa. Também era um compromisso e eles se entreolhando dispersam. Aquela noite ninguém dormiu. Como pregar no sono antevendo tantas glórias, tantos embates, tantas vitórias. Tudo isso eu vi e muito mais vivi, mesmo depois que se foram esses meninos. Vi o sonho juvenil virar instituição. Vi onze se multiplicarem por milhares e estes transformados em multidão ocupando e colorindo os estádios, entoando gritos de guerra de fazer tremer a terra. Vi alastra-se a chama da paixão alvirrubra pelo país e além-fronteira. Vi aqueles meninos envelhecerem e partirem. Mas vi também a fantástica e milagrosa multiplicação de meninos que vieram, que estão e que virão. Também naqueles tempos vi o primeiro gol do Cavaco, os primeiros jogos na Praça da Estação, o primeiro jogo internacional, a inauguração do estádio e, por incrível que pareça, vi Bilac, o Príncipe dos Poetas, dando o pontapé inicial. Em Pelotas, a conquista do primeiro título estadual, em 20. E vi também a repetição do feito em 38. O primeiro jogo noturno, os 129 gols do Max, a Seleção da Rússia. Vi Rubilar, Tupãzinho, Calvet, Saulzinho e Branco. Vi atletas de desempenho superior e dirigentes de grande envergadura, mais que isso vi o milagre da renovação da vida acontecendo no dia-a-dia, no corpo e na alma dos meninos que não se sabe porque, nem porque artes de magia, nascem, vivem e transmitem a paixão Guarany que se sucede aos milhares transformando em crença uma ideia, transmutando um punhado de jovens em multidões e esse povo como mar vermelho e branco inundando corações e mentes. Tudo isso eu vi e vejo além. Vejo um sol encarnado que renasce diariamente ofuscando os olhos adversários, aquecendo os espíritos da gente alvirrubra e com seu calor irradiante fazendo germinar, crescer e florescer a chama da paixão do amor maior de muitas vidas Guaranys e quando se cerrarem meus olhos, hei de ver por derradeiro a imagem daquele menino, daquele Guaranyzinho abeberado de romantismo declamando na praça:

“E à noite, nas tabas, se alguém duvidava
Do que ele contava,
Tornava prudente: - "Meninos, eu vi!”

SAPIRAN BRITO

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